Um copo de água e eu.
Tento fixar os olhos na aparente, quase chocante transparência do líquido; são os meus olhos que se turvam e perdem.
Vejo à minha beira uma barcaça cheia de foragidos. Chamam-lhe refugiados, chamo-lhe gente perdida no labirinto dos que lhes impõem o rumo. “A Polícia Marítima detetou na madrugada desta quarta-feira uma embarcação com 11 imigrantes ilegais a bordo junto a Olhão, três dos quais tiveram de ser transportados ao Hospital de Faro para despistar problema de saúde“.
Bebo um gole de água, para disfarçar. Sabe-me amargamente aos locais de seca.
É um gole de uma preciosa presença aqui a um passo da minha falta de generosidade, não preciso de um copo de água, mas de uma gota e todavia fico-me pelo desperdício.
Leio que um certo tipo discursou enquanto uma plateia o saudava com o braço estendido à moda dos nazis. Aqui, no meu país de flores regeneradoras. É um insulto. Morremos afogados com tanta água aqui à beira.
Aprender história devia ser obrigatório. Perceber que os assassinos do mundo ficam sempre impunes, a menos que as novas gerações façam o oposto do que fizeram e recusem heranças contaminadas. Como o veneno na água.
Saúdam-se os bufos, os que denunciam, e não se vigiam os que nos traem. Elegemos traidores. Festejamos a sua nulidade. Confundimos interesse de estado com interesses no estado. Nós, que já sofremos um repugnante Estado Novo.
Bebo mais um pequeno gole. A verdade é que procuro afastar-me de tudo o que me preocupa, e preocupa-me tanto tudo.
Água. Talvez chover e ficar à chuva como um caule sequioso. É uma manhã como outra qualquer e nem sei já se tenho sede.
Escrever, há anos, operava um certo milagre em mim: de tudo o que eu não era nascia outro tudo que eu podia ser e eu aquietava-me, em palavras que pareciam atos poderosos.
Não sei se creio ainda nas palavras. Creio na água. Fonte de vida.
Estou a ficar estranhamente triste, sentado a um canto, contando pedrinhas que atrapalham os passos. Tenho dias assim.
O mundo ainda ri e dança, canta e cria mas só nos dias em que se ignora.
Tenho escrito recentemente, muito, sobre memoria. Li há dias: “Tributários de uma neotenia cultural, como nos diz Robert Pogue Harrison, somos um corpo que nasceu inteiro, mas inacabado.” Só a memória podia ser completude? Porque a recusamos? Temos medo de perceber o que perdemos? Ou temos uma desesperada saudade do que ainda não somos, desconhecendo se conseguimos um dia lá chegar?
Água. É só o que tenho.
Alexandre Honrado
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